Compartilho com vocês, amigos leitores, uma homenagem de Carlos Nelson Coutinho a Leandro Konder, um escrito belíssimos e cheio de reflexões teóricas que nos possibilitam o exercício de um posicionamento reflexivo. Não retirei nada de seu escrito, esta na integral, apenas sinalizei os pontos que para mim serviram de reflexão.
Carlos Nelson Coutinho - Outubro 1998.
Gostaria de começar elogiando a
iniciativa da comissão que organizou esta "Jornada Leandro Konder",
destacando a participação nesse empreendimento da Profª. Maria Orlanda Pinassi,
que acabou de nos fazer uma apresentação tão emocionada. É extremamente importante
que estejamos começando a discutir coletivamente, nos quadros da universidade,
a obra de Leandro Konder. Essa obra constitui, sem dúvida, um dos capítulos
mais significativos da história do marxismo no Brasil; e o marxismo, por sua
vez, constitui um capítulo decisivo da história da cultura brasileira no século
XX.
Também gostaria de começar lembrando
que, para mim, é muito difícil ser objetivo em relação a Leandro, à sua
personalidade e à sua produção teórica. Iniciamos nossa colaboração intelectual
há muitos anos, desde 1962; e, de lá para cá, fomos nos tornando cada vez mais,
além de estreitos colaboradores, amigos íntimos e fraternos. Por isso, tenho
sempre a impressão de que, quando elogio Leandro, também estou me elogiando, ou
que, quando o criticam, também estou sendo criticado. Tentarei, porém, ser o
mais objetivo possível, pois acredito que, em princípio, a proximidade com o
objeto nem sempre nos impede de captar sua grandeza.
Dois eixos importantes articulam a
vida e a obra de Leandro, se é que se pode resumir uma obra e uma vida tão
ricas em apenas dois eixos. Estes seriam a coerência e a autonomia (ou
independência) intelectual. Trata-se, certamente, de duas coisas
estreitamente articuladas. Sem autonomia, a coerência leva muitas vezes ao
dogmatismo, ao fechamento diante do novo, da riqueza sempre renovada do real; lembro que o Barão
de Itararé, que é objeto de um belo livro de Leandro, dizia que só muda de idéias
quem tem idéias. Em Leandro, a coerência se articula organicamente com a autonomia
intelectual; por isso, sua inegável coerência teórica e ético-política não se
converte em teimosia subjetiva, mas sim numa rica e dialética relação com a
objetividade, que é mutável e plural, mas que também apresenta linhas de
continuidade. Por outro lado, a autonomia sem coerência - que é, de resto, uma falsa
autonomia - pode levar, no terreno teórico, ao ecletismo, à adesão irrefletida
às mais efêmeras modas culturais; e, no terreno político, ao oportunismo, ao
transformismo, à tentativa de estar sempre de acordo com a corrente dominante. Leandro soube
evitar estas duas tentações, o ecletismo e o oportunismo, às quais sucumbiram
tantos importantes intelectuais brasileiros da sua geração - e não só dela.
E o fez precisamente porque soube articular, na sua vida e na sua obra,
coerência e autonomia. E, já que estou
falando de coerência, gostaria de chamar a atenção para algo que me parece
fundamental: é impossível examinar a produção teórica de Leandro - uma produção que
se iniciou há cerca de 40 anos - sem se dar conta de que ela está estreitamente
articulada com suas escolhas ético-políticas. Ele não é um intelectual acadêmico
que, de vez em quando, assina um manifesto ou toma posição em face de um
problema político posto na ordem do dia. Como marxista, Leandro concebe sua
atividade intelectual como um modo específico, entre outros modos possíveis, de
atuar sobre o real, de contribuir para sua transformação. Não se trata de um
intelectual que tem "opiniões políticas", mas de alguém que, a partir
de uma coerente visão de mundo, de uma decisão muito clara de mudar o mundo,
resolveu colaborar com esta ação de mudança através daquilo que sabe fazer
melhor, ou seja, lidar com a teoria. Não é que Leandro tenha se recusado,
em muitos momentos concretos, a pixar paredes, a distribuir panfletos na rua, a
fazer agitação, ou seja, a "cumprir tarefas"; mas foi certamente
tornando-se intelectual que ele julgou ser capaz de contribuir do modo mais
adequado, em função de seu caráter e de seus talentos, não só para interpretar
o mundo, mas também - como diria o velho Marx - para transformá-lo.
Leandro se tornou comunista nos
longínquos anos 50, quando muitos de vocês certamente nem eram nascidos, e
conserva-se comunista até hoje. Também neste terreno soube combinar coerência
com autonomia: sem abandonar sua opção comunista, radicalmente anticapitalista,
foi capaz de reformular posições, de atualizá-las, de fazê-las aderir à
mobilidade do real. Neste particular, haveria muita coisa a dizer e a lembrar,
desde as difíceis lutas que ele travou no interior do PCB (a condenação pública
da intervenção do Pacto de Varsóvia na Tchecoslováquia, em 1968; a defesa
radical da democracia como valor universal contra as hesitações da direção
partidária, no início dos anos 80, etc., etc.) até a sofrida decisão de sair
deste Partido e, mais tarde, de ingressar no PT.
Mas vou recordar apenas um pequeno
exemplo pessoal. Leandro é filho de um importante dirigente comunista brasileiro,
Valério Konder, por quem ele sempre teve uma grande admiração e respeito. Mas,
desde o início de sua militância comunista, suas posições iam freqüentemente de
encontro às do seu pai - e Leandro jamais hesitou em tomá-las quando as julgou
corretas. Em 1965, dois intelectuais dissidentes soviéticos, Siniavski e
Daniel, se bem lembro dos nomes, foram condenados na União Soviética. Leandro
assinou um manifesto de intelectuais contra essa condenação. Eu estava
viajando, não pude assiná-lo. Voltando ao Rio, encontrei-me com Dr. Valério e
ele, julgando que eu não assinara o manifesto por dele discordar, foi logo me
dizendo: "Meu filho, seu amigo é um irresponsável: assinou um documento
contra o Comitê Central do PCUS. E quem é ele para ir de encontro ao PCUS?".
Como muitos de sua geração, Dr. Valério era um "patriota soviético":
confundia a defesa do comunismo com o apoio irrestrito à União Soviética. Sem
deixar de admirá-lo e de respeitá-lo (e Dr. Valério era realmente uma pessoa
admirável e respeitável), Leandro nunca se submeteu às suas opiniões
pró-soviéticas.
Além de aderir muito cedo ao comunismo
como escolha política, Leandro também se tornou marxista: e o marxismo foi o
paradigma teórico que orientou e orienta até hoje sua produção teórica. Ele não
sucumbiu às tentações da chamada "pós-modernidade", que levaram
muitos dos intelectuais de nossa geração não só a abandonar o marxismo, mas até
a se tornarem, em muitos casos, raivosamente antimarxistas. O marxismo, para
Leandro, não foi uma moda passageira: foi uma complexa e sólida opção teórica,
cimentada num profundo processo de aprendizado. Tanto é assim que ele continua
a ser marxista, um marxista de profundo espírito crítico, é verdade, mas -
precisamente por isso! - marxista. Como ele não aprendeu marxismo nem
nos pífios manuais da extinta Academia de Ciências da URSS nem nos folhetos de
Mao Tsé-tung, mas sim lendo Marx e Engels, lendo Lukács e Gramsci, lendo a
Escola de Frankfurt, etc., Leandro pôde enfrentar com serenidade teórica e
coerência política a chamada "crise do marxismo e do comunismo". Ele
sabe muito bem que o que entrou em crise não foi o marxismo, nem o comunismo
como proposta de emancipação humana, mas sim determinadas formas
histórico-concretas assumidas pelo comunismo e pelo marxismo nesse contraditório
e tumultuado século XX.
As primeiras produções teóricas de
Leandro Konder vieram à luz no início dos anos 60. Dentre elas, as mais
significativas foram publicadas, entre 1960 e 1963, na revista Estudos Sociais, uma revista teórica do PCB, dirigida então, entre
outros, pelo meu querido amigo Armênio Guedes, aqui presente (1). Leandro
publicou nesta revista cinco ensaios que chamaram a atenção de muita gente,
mas, em particular, de um jovem baiano, que na época não tinha nem 20 anos, e que,
acreditem, foi convertido neste senhor que agora lhes fala. Pois bem, nestes
ensaios, Leandro tratava de Rousseau e de Sartre, de Fernando Pessoa e da
estética marxista, da necessidade de um diálogo entre marxistas e cristãos. Os
temas não eram casuais: é fácil perceber que estes ensaios juvenis de Leandro
já definem de certo modo as escolhas temáticas que ele iria desenvolver ao
longo de sua atividade intelectual sucessiva, nos quase quarenta anos que nos
separam do início dos anos 60.
O ensaios sobre Sartre, Rousseau e
Fernando Pessoa antecipavam um dos eixos da produção teórica de Leandro, ou
seja, a abordagem monográfica de alguns importantes pensadores (como Hegel,
Fourier, Lukács e Benjamin) e também de significativos artistas (como Kafka e
Brecht). O texto sobre a estética marxista - transcrição de uma conferência
pronunciada no Iseb, na qual, de resto, podemos encontrar uma das primeiras
menções a Gramsci feitas no Brasil - antecipa, por sua vez, outra linha da
atividade de Leandro, ou seja, a reflexão sobre a teoria marxista, sobre a
filosofia e a estética marxistas, uma linha investigativa que vai de seus
primeiros livros, Marxismo e Alienação e Os marxistas e a arte, até o recente O futuro da filosofia da práxis e a pesquisa sobre o
conceito de ideologia, que ele está atualmente desenvolvendo. Finalmente, o
ensaio que discute e propõe o diálogo entre marxistas e cristãos (que, na
época, com meu sectarismo juvenil, eu achei até, digamos, excessivamente
tolerante com os cristãos) indica um traço marcante da ação teórica e política
de Leandro, que iria em seguida se acentuar cada vez mais: um profundo espírito
de tolerância, a abertura para o diverso, a permanente preocupação em manter
abertas as condições para um fecundo diálogo entre o marxismo e as demais
correntes de pensamento, em particular o cristianismo. Uma atitude tolerante
que não se manifesta apenas no terreno da batalha das idéias, mas que é um
traço essencial da personalidade de Leandro: não é casual que ele tenha hoje
muitos amigos cristãos, pelo menos em tão grande quantidade como tem amigos
marxistas. E tampouco me parece casual que o saudoso José Guilherme Merquior,
talvez o mais brilhante pensador liberal brasileiro, tenha dedicado a Leandro o
seu livro de crítica ao "marxismo ocidental" (2).
Para avaliar melhor o papel de Leandro
Konder na história da cultura brasileira, seria interessante recordar o que
significou, sobretudo para nosso marxismo, esse início dos anos 60. O XX
Congresso do Partido Comunista da União Soviética, ocorrido em 1956, quando
Kruschev denuncia os crimes de Stalin, teve repercussões muito fortes no
Brasil, em particular no Partido Comunista Brasileiro, que então ainda detinha,
praticamente, o monopólio da difusão do marxismo entre nós. Entre outras consequências,
o marxismo brasileiro começou então a se abrir, ainda que timidamente, para a
recepção de autores até este momento tidos como "heterodoxos", ou
mesmo como "renegados" e "revisionistas".
Até então, as fontes para o estudo do
marxismo no Brasil eram os manuais publicados em série pela Academia de
Ciências da hoje extinta União Soviética. Que Leandro tenha sempre se recusado
a considerar tais "manuais" como fonte autorizada de marxismo foi algo
que pude atestar desde nossos primeiros encontros. Conto-lhes um fato,
revelador não só da autonomia intelectual do Leandro, mas também do seu apurado
senso de humor. Quando eu ainda morava na Bahia, fui visitar o Leandro numa de
minhas idas ao Rio, aí por volta de 1962; em sua mesa de trabalho, estava um
enorme livro verde, recém-publicado pelo Editorial Vitória, a editora do PCB,
cujo título era Fundamentos do marxismo-leninismo; ri muito ao ver que
Leandro havia escrito na capa do livro um enorme A, transformando assim o
título do besteirol em Afundamentos do marxismo-leninismo. Diante do meu riso,
ele ainda comentou: "Veja, estes manuais são sempre escritos por muita
gente, mas não podemos dizer que sejam escritos ''por várias mãos'', e sim
''por várias patas''.
O fato é que, na esteira do XX
Congresso e da conseqüente renovação do PCB, teve lugar entre nós uma abertura
do marxismo, uma quebra do monopólio quase exclusivo dos manuais soviéticos de
"marxismo-leninismo". É muito importante registrar que Leandro foi um
dos campeões desta abertura. Foi sobretudo graças a ele que se tomou
conhecimento no Brasil de autores como Georg Lukács, Antonio Gramsci, Lucien
Goldmann e tantos outros, que ele diligentemente sugeria a Ênio Silveira e a
Moacyr Félix para publicação pela Editora Civilização Brasileira e, mais tarde,
também pela Revista Civilização
Brasileira. Em muitos casos, Leandro assumiu diretamente a tarefa de traduzir e
editar tais autores, como foi o caso da coletânea Ensaios sobre literatura, de Lukács, publicada em 1965, que
teve um extraordinário papel na renovação da política cultural e das concepções
estéticas da esquerda, um terreno que ocupava intensamente, na época, o debate
intelectual em nosso País. Leandro prefaciou também, junto comigo, a primeira
edição brasileira de Gramsci, o volume temático Concepção dialética da
história. Penso que José Paulo Netto irá explicitar mais amplamente, em sua
intervenção, o papel decisivo que Leandro desempenhou na batalha de idéias
travada pela esquerda ao longo dos difíceis anos 60.
Mas, ao lado desta sua atividade como
editor e como formulador no terreno da política cultural, gostaria de voltar à
atividade de Leandro como ensaísta. Depois dos seus ensaios em Estudos
Sociais, já lembrados, Leandro publicou em 1965 um livro chamado Marxismo e alienação, seguido, em 1967, por um outro intitulado Os marxistas e arte. Não diria que, com tais livros, Leandro iniciou o
estudo e a difusão do marxismo no Brasil. Já dispunhamos, na época, de
importantes produções marxistas de autores nacionais, mas que se concentravam
sobretudo no terreno da historiografia (basta lembrar aqui a obra de Caio Prado
Júnior e de Nélson Werneck Sodré) e, em menor medida, no campo da crítica
literária (cabe mencionar as produções de Astrojildo Pereira e do próprio
Sodré).
Mas, ao contrário, até o início dos
anos 60, era paupérrimo o tratamento propriamente teórico-filosófico do
marxismo por autores brasileiros. Nos anos 40, com nova edição no início dos
anos 60, Leôncio Basbaum publicara uma Sociologia do
materialismo, que vocês certamente não leram e será muito bom que não leiam nunca: é
um amontoado de sandices. Vocês também não devem ter lido dois livros de
filosofia publicados por Caio Prado Júnior, nos anos 50, intitulados Dialética do conhecimento e Notas introdutórias à lógica dialética, felizmente, creio e espero, não mais
reeditados: é penoso ver como o brilhante historiador paulista enfrenta temas
com os quais tem escassa familiaridade. É certamente de lamentar que Caio Prado
Jr. tenha abandonado sua obra historiográfica sobre a Formação do Brasil contemporâneo (do qual só publicou
o volume sobre a Colônia) para dedicar-se a
temas que lhe eram fundamentalmente estranhos. E, se lembrarmos um livro do
médico paulista Álvaro de Faria, Introdução ao estudo
do formalismo e das contradições, publicado em 1960, torna-se ainda
mais evidente o quadro de completa indigência do marxismo brasileiro da época
no terreno da filosofia.
Neste quadro, os dois livros de Leandro
por mim mencionados são como um raio em dia de céu claro. Junto com Origens da dialética do trabalho, publicado por José Arthur Gianotti em
1966, estes dois livros põem o marxismo teórico brasileiro em outro nível,
entre outras coisas porque trazem para discussão as idéias dos mais importantes
representantes do chamado "marxismo ocidental", como Lukács, Gramsci,
Goldmann, Sartre, etc. Se vocês lerem, por exemplo, Marxismo e alienação, verão o correto tratamento de um tema filosófico
decisivo, até então completamente ignorado pelos nossos marxistas; se lerem Os marxistas e a arte, tomarão conhecimento das idéias
estéticas de uma plêiade de notáveis autores marxistas (Caudwell, Benjamin,
Della Volpe, etc., etc.), então inteiramente desconhecidos no Brasil.
Infelizmente, estes livros estão esgotados e não foram nunca reeditados
(Leandro parece ser contra a reedição de seus livros!), o que dificulta a
percepção de sua radical novidade no quadro do marxismo teórico brasileiro. Eles tiveram um importante
papel na batalha de idéias em que os intelectuais de esquerda estávamos então
empenhados. E não foram poucos os que se aproximaram do marxismo através desses
livros de Leandro. Com eles, estavam definitivamente "afundados"
entre nós os pífios manuais da Academia soviética.
Hoje pode até parecer banal que um
autor marxista tenha abordado o tema da alienação ou que tenha posto em
circulação entre nós autores como Lukács, Gramsci ou Benjamin. Decerto, quase
nenhum marxista brasileiro ignora atualmente estes temas ou estes autores. Mas,
em meados dos anos 60, quando Leandro publicou seus livros, tratava-se
certamente de uma radical inovação. E, se tais temas ou autores se tornaram
hoje banais no Brasil, isso se deve em grande parte à produção intelectual de
Leandro nos anos 60. Neste sentido, não hesitaria em dizer que essa produção é
um radical ponto de inflexão na história do marxismo brasileiro. A partir dos
primeiros livros de Leandro, passou-se a cobrar e a exigir da reflexão marxista
entre nós um outro nível. Evidentemente, não posso aqui, no pequeno espaço de
tempo de que disponho, discutir mais profundamente as indiscutíveis grandezas e
também os eventuais limites da produção teórica de Leandro. Espero que essa
discussão se inicie nas outras intervenções e nos debates que se seguirão. Gostaria
apenas de ressaltar que, sem uma análise dessa produção teórica, faltará um
capítulo essencial na história, não só do marxismo brasileiro, mas também do
pensamento social e estético em nosso País.
Mas eu gostaria também de recordar um
aspecto da produção cultural e da ação política de Leandro Konder que nem
sempre é devidamente ressaltado, ou seja, sua atividade como jornalista, à qual
dedicou, desde jovem, uma parte significativa de sua atividade intelectual. Com
o codinome de Pedro Severino, no início dos anos 60, Leandro manteve uma coluna
satírica de elevado nível no semanário comunista Novos Rumos; lembro-me bem das risadas que dava ao ver que Pedro Severino,
ironizando as primeiras incursões do misticismo orientalista no Brasil,
insistia em chamar de zen-bundistas os que se diziam interessados nas religiões orientais. E quem não
continua a rir hoje quando lê, em sua coluna quinzenal em O Globo, as peripécias e reflexões de Alberto, o simpático sapateiro anarquista
por trás do qual Leandro, como Drummond com seu elefante, costuma
freqüentemente se disfarçar? Quando forem publicadas suas obras completas,
certamente não serão poucos os volumes que recolherão esta vasta e
significativa produção jornalística de Leandro. Mas, além dessa suas colaborações
regulares em Novos Rumos e em O Globo, separadas por quase
quarenta anos, Leandro também desempenhou outras atividades jornalísticas. Foi,
por exemplo, o eficiente e pluralista editor cultural do semanário Folha da Semana, que o PCB fez publicar no Rio entre 1965 e 1966,
já depois do golpe de 64, mas ainda antes do AI-5; ele soube reunir então, na
página cultural deste semanário, intelectuais de diversa origem e posição
teórica, facilitando a interlocução dos comunistas com os intelectuais.
Mais tarde, na década de 70, Leandro
(com os pseudônimos de F. Teixeira e de Lair Cordeiro) foi um ativo articulista
da Voz Operária no exílio, ou seja, do pequeno jornal do Comitê Central do PCB, que era
então feito em Paris e impresso em Roma, para depois ser mandado
clandestinamente para o Brasil. Eu e Armênio, que também trabalhávamos na Voz(Armênio era nosso democrático editor-chefe!), lembramos bem o seguinte:
quando estávamos para fechar o pequeno jornal e alguém não aparecia para trazer
seu artigo previamente encomendado (o que acontecia muitas vezes!), Armênio
dizia: "Leandro, escreva aí 25 linhas". E Leandro imediatamente
sentava e escrevia, fossem 25 ou 55 linhas, qualquer que fosse o assunto
proposto, um tema político, cultural ou até esportivo. O artigo saía do tamanho
certo, quase sem emendas, sempre preciso e inteligente. Eu nunca conseguia
fazer isso, ficava até meio deprimido, mas Armênio, como bom e solidário
baiano, me consolava: "Carlito, é essa a diferença entre a cultura
teuto-carioca e nossa complicada cultura baiana". Todos os jornalistas
profissionais que conviveram com Leandro (e lembro aqui do nosso querido amigo
comum Luiz Mário Gazzaneo) são unânimes em reconhecer essa extraordinária
capacidade jornalística de Leandro. Uma capacidade que, também nesse caso, foi
sempre posta a serviço de uma batalha política e cultural.
Talvez seja o momento de tentar propor
um balanço da atividade intelectual e política de Leandro Konder, um balanço
provisório, é claro, porque ele tem ainda muito a nos dizer. Sempre que penso
na atividade de Leandro, como escritor, como jornalista, como militante
político, como professor, recordo uma observação de Gramsci, um autor que nos
é, a mim e a Leandro, muito caro. Gramsci diz o seguinte: "Criar uma nova
cultura não significa apenas fazer individualmente descobertas ''originais'';
significa também, e sobretudo, difundir criticamente verdades já descobertas,
''socializá-las'' por assim dizer; e, portanto, transformá-las em base de ações
vitais, em elemento de coordenação e de ordem intelectual e moral. O fato de
que uma multidão de homens seja conduzida a pensar coerentemente e de maneira
unitária a realidade presente é um fato ''filosófico'' bem mais importante e
''original'' do que a descoberta, por parte de um ''gênio'' filosófico, de uma
nova verdade que permaneça como patrimônio de pequenos grupos
intelectuais" (3). Se Gramsci está certo - e eu creio que
esteja -, foram muito poucos os intelectuais brasileiros que contribuíram tanto
como Leandro para a criação de uma "nova cultura" entre nós. Com seu
extraordinário talento, ele certamente poderia ter se dedicado a descobrir
"novas verdades" que se restringissem a "pequenos grupos
intelectuais". Optou, ao contrário, por "socializar verdades já
descobertas", por transformá-las em patrimônio de muitos, em base de ações
vitais efetivamente transformadoras do real. Fez isso de modo sistemático em
sua produção teórica, em sua atividade jornalística, em sua militância
política, em sua atuação mais recente como professor e como mestre.
Cabe aqui uma breve palavra sobre
Leandro como professor, breve porque acredito que a amiga Margarida Neves vai
falar mais detidamente sobre esse aspecto da atividade de Leandro, já que os
dois trabalham juntos na mesma Universidade. Leandro só se tornou professor
regular tardiamente, no início dos anos 80, depois de voltar do exílio, quando
então passou a ser possível a um intelectual comunista ingressar como professor
regular na Universidade, inclusive numa universidade formalmente católica. Mas,
mesmo antes disso, Leandro já era um professor e um mestre: sou testemunha de
que, até nas épocas mais difíceis da ditadura, ainda que correndo riscos,
Leandro nunca recusava o convite de qualquer pequeno grupo de estudantes, de
sindicalistas, de profissionais liberais para fazer uma conferência ou dar uma
aula sobre Lukács, sobre marxismo, sobre estética, sobre análise de conjuntura,
etc. Isso fazia parte, dizia ele, de sua militância, de seu empenho em
"socializar a verdade", em difundi-la entre um número cada vez maior
de pessoas. Não está entre os menores crimes da ditadura ter mantido Leandro
tantos anos fora da Universidade, o que decorria do fato de que não existia em
nosso País liberdade de pensamento e de expressão do pensamento.
Por tudo isso, Leandro está entre os
poucos intelectuais brasileiros que podem reivindicar o título gramsciano de
"filósofo democrático". Definindo este conceito, diz Gramsci:
"Compreende-se assim por que uma das maiores reivindicações das modernas
camadas intelectuais foi a da chamada ''liberdade de pensamento e de expressão
do pensamento (imprensa e associação)'', já que só onde existe essa condição
política se realiza a relação de professor-discípulo no sentido mais geral
[...]; e, na realidade, só assim se realiza um novo tipo de filósofo, que se
pode chamar de ''filósofo democrático'', isto é, do filósofo consciente de que
a sua personalidade não se limita à sua individualidade física, mas é uma
relação social ativa de modificação do ambiente cultural" (4).
Quem diz democracia diz também
generosidade. E o traço caracterial de Leandro que certamente mais me
impressionou, ao longo destes quase quarenta anos de íntima convivência e de
amizade fraterna, foi sua enorme generosidade. Uma generosidade que se
manifesta, antes de mais nada, nesse seu empenho em difundir o saber, em
partilhar com muitos o que ele sabe (e ele sabe muito!), seja em sua produção
teórica, seja em sua atividade como professor e como jornalista. Mas que também
se manifesta como atitude vital em face dos outros. Quanto a isso, gostaria de
dar um exemplo pessoal: conheci Leandro do seguinte modo: tínhamos um amigo
comum, eu havia lido os cinco ensaios dele a que me referi antes, publicados em
Estudos Sociais, e, por meu turno, havia publicado na época, com 17-18
anos, numa revista da Faculdade de Direito da Bahia, uns textos meio bizarros,
infanto-juvenis. Mas, intrépido e corajoso, mandei para Leandro, através deste
amigo, os tais textos, solicitando sua opinião. Ele me escreveu uma carta
extremamente generosa, muito cuidadosa, advertiu-me sobre o uso de autores
heréticos, mas me estimulou muito e logo propôs que nos encontrássemos para
discutir pessoalmente. Pouco depois vim ao Rio (acho que em março de 1962) e
nos conhecemos pessoalmente. Sou quase oito anos mais moço que o Leandro, mas
ele nunca me tratou, desde este primeiro encontro, quando eu tinha apenas 18
anos, como um jovenzinho baiano que ele devia "tutorar". Ao
contrário, sempre me tratou como um igual, como um companheiro de atividade
intelectual; abriu inúmeras portas no Rio para que eu publicasse na então
"metrópole", inicialmente em Estudos Sociais e depois na Revista Civilização Brasileira, e indicou-me a Ênio
Silveira para traduzir a obra de Gramsci, etc. Enfim, deu-me espaço para
crescer de modo autônomo.
Eu queria concluir dizendo da minha
enorme satisfação em participar desta homenagem a Leandro, um produtor de
cultura, um extraordinário ser humano, um mestre. Tentei ser objetivo, mas -
como vocês puderam observar - isso nem sempre é fácil para mim. Mas, se o preço
da objetividade for a frieza e a distância, renuncio facilmente a ela para
falar de Leandro. Estou seguro de que ele é um dos poucos intelectuais
brasileiros a quem cabe o qualificativo de mestre, de "filósofo democrático".
Mas o que sobretudo me faz feliz é tê-lo como amigo fraterno, como companheiro
de vida, de combates intelectuais e de batalhas políticas.
Carlos Nelson Coutinho é professor
titular de Teoria Política da UFRJ.
(1) L. Konder, "Sartre, suas
contradições formais e seus méritos", Estudos Sociais, nº 9, outubro de
1960, p. 89-94; Id., "Algumas considerações sobre a fisionomia ideológica
de Fernando Pessoa", ibid., nº 11, dezembro de 1961, p. 283-294; Id.,
"O Contrato social e o liberalismo burguês", ibid., nº 14, setembro de 1962, p.
175-182; Id., "Marxismo e cristianismo: pressupostos de um diálogo",
ibid., nº 16, março de 1963, p. 332-340; Id., "Alguns problemas do
realismo socialista", ibid., nº 17, junho de 1963, p. 46-60.
(2) J. G. Merquior, O marxismo ocidental, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1987. Lá podemos
ler, na p. 3: "Para Leandro Konder, que não concordará com tudo...".
(3) A. Gramsci, Cadernos do cárcere, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, vol. 1,
1999, p. 95-96.
Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.