Texto do Prof.
Jean-François Deluchey - Universidade Federal do Para.
Será que podemos resistir à mistura da religião com política no XXI
século? André Malraux, ministro francês da Cultura e literato autor do romance
maravilhoso "A condição humana" fez a seguinte advertência ainda no
século passado: "O século XXI será religioso e não será!" Quando vejo
a religião dar um sentido dogmático ao engajamento político, isto me preocupa.
Não que estejamos completamente desprovidos de valores religiosos na nossa
construção cultural coletiva, seria idiota sustentar tal afirmação. O que me
preocupa é quando todos os projetos políticos se referenciam em assuntos
religiosos, seja positivamente ou negativamente. Eu fui criado com um pai ateu
e uma mãe católica, mas fui criado em um ambiente onde religião fazia parte do
universo privado (a famosa laicidade à francesa). E tenho respeito demais para
a fé para não considerar que isto possa ser importante para um indivíduo, que
isto constrói e molda o espaço íntimo de qualquer um. Cada um tem a sua própria
fé, até um agnóstico como eu. O que me preocupa é quando esse espaço íntimo,
essa crença ou essa fé se torna a única maneira de se colocar como cidadão na
esfera pública. Não se pode mais ser católico e socialista, muçulmano e
liberal, homossexual e protestante, espírita e anarquista? O foro íntimo como
berço da ação política apenas pode levar à intolerância, ao fascismo de toda
espécie. Creiamos, tenhamos fé, porque isto nos sustenta perante à grande
pergunta. Mas pelo amor de deus (!), deixemos de tomar a bíblia, o corã ou
outra referência religiosa como se fosse nossa constituição política, o projeto
que pode unir nós todos. Apesar de sua raiz latina, a religião mais divide de
que une, porque ela não propõe o debate, ela impõe um dogma, uma visão
particular e definitiva (portanto não discutível) de nosso ser coletivo. Dogma
é contrário ao pensar. E se quisermos construir um projeto renovado de
sociedade, que possa nos unir na mesma fé do amanhã. Temos de pensar e reunir
esses pensamentos através da confrontação dos pensamentos. Vejo muitos amigos,
colegas e estudantes que confiam cada vez mais na religião para construir um
outro amanhã, e um outro "eu". A vida espiritual não é um projeto
político, é uma vivência íntima. Essa vivência íntima pode lhe oferecer um
caminho de vida particular, é obvio. Mas nunca deixará de ser uma experiência
íntima e nunca deve deixar de ser. A solidariedade é possível de expressar
através da fé cristã, da fé muçulmana, da fé espírita ou de outra fé, claro que
sim. Mas uma idéia política supera, em termos coletivos, todas as doutrinas
particulares ao foro íntimo. Alguns querem fazer da religião uma negação da
política. Eu digo para os meus amigos que confundem fé religiosa e caminhada
política: usem os valores religiosos para o bem coletivo, mas não se prendem a
elas como vetores de exclusão. O que aconteceu recentemente no meu País, a
França, é paradigmático do que eu queria expressar aqui, com palavras pobres e
desajeitadas de forasteiro. A religião (às vezes até concretamente, através do
financiamento pela Igreja dessas manifestações do "contra a igualdade de
direitos para todos"), não pode ser a chave de entendimento do nosso viver
comum, do nosso projeto coletivo. Ela pode nutri-lo, mas nunca substituí-lo.
Por isso minha oração (!): que sejamos capazes, apesar das nossas diferenças de
foro íntimo, de fé, de conversar e debater do nosso projeto comum, na
indiferença absoluta das diferenças. Aí poderemos, sim, enfrentar a partir do
pensar, os valores que queremos defender em comum, e construir juntos o projeto
de amanhã.