Alguns pontos que achei importantes da Entrevista " O Marxismo Hoje" com
István Mészáros.
Sobre a distinção entre Capital e Capitalismo, a importancia da classe operaria e sua luta.
Em
entrevista para a Montly Review, em 93, István Mészáros falou sobre os
conceitos presentes em seu livro Para além do capital: rumo a uma teoria da
transição, na época, ainda em fase de publicação. Acompanhe a tradução
publicada na revista Crítica Marxista. (Rodrigo Choinski)
Em textos
recentes sobre a transformação socialista, o senhor introduziu uma importante
distinção entre capital e capitalismo. Poderia explicar essa distinção e seu
significado para a luta socialista?
MÉSZÁROS:
Bem, na verdade tal distinção remonta ao próprio Marx. Eu salientei inúmeras
vezes que Marx não intitulou sua principal obra O capitalismo, e sim O
capital e também anotei que o subtítulo do volume I foi mal traduzido, sob
a supervisão de Engels, como "o processo de produção capitalista",
quando, de fato, é "o processo de produção do capital", o que tem um
sentido radicalmente diverso. O que importa aqui, sem dúvida, é que o objetivo,
o alvo da transformação socialista é superar o poder do capital. O capitalismo
é um objetivo relativamente fácil nesse empreendimento, pois você pode, num
certo sentido, abolir o capitalismo por meio do levante revolucionário e da
intervenção no plano da política, pela expropriação do capitalista. Ao fazê-lo,
você colocou um fim no capitalismo, mas nem sequer tocou no poder do capital. O
capital não depende do poder do capitalismo e isso é importante também no
sentido de que o capital precede o capitalismo em milhares de anos. O capital
pode sobreviver ao capitalismo, é de esperar que não por milhares de anos, mas
quando o capitalismo é derrubado numa área limitada, o poder do capital
continua, mesmo que numa forma híbrida.
A União
Soviética não era capitalista, nem mesmo capitalista de Estado. Mas o sistema
soviético era bastante dominado pelo poder do capital: a divisão de trabalho
permaneceu intacta, a estrutura hierárquica de comando do capital subsistiu. O
capital é um sistema de comando cujo modo de funcionamento é orientado para a
acumulação, e esta pode ser assegurada de muitas formas diferentes. Na União
Soviética, o trabalho excedente era extraído de forma política e foi isso o que
entrou em crise nos anos recentes. A extração politicamente regulada de
trabalho excedente tornou-se insustentável por uma variedade de razões. O
controle político da força de trabalho não é o que se poderia considerar uma
forma ótima ou ideal de controlar o processo de trabalho. Sob o capitalismo, no
Ocidente, o que temos é uma extração economicamente regulada de trabalho
excedente e de valor excedente. No sistema soviético isso era feito de um modo
bastante impróprio, quando a ótica é a da produtividade, porque o trabalho
retinha um imenso poder, na forma de atos negativos, desafio, sabotagem, dupla
jornada etc., diante do qual não se podia sequer sonhar em atingir o tipo de
produtividade viável em outros lugares e que minava a raison d’être
desse sistema sob Stalin e seus sucessores - a acumulação politicamente
imposta. Sua parte de acumulação ficou paralisada e, por isso, todo o sistema
entrou em colapso. Publiquei na Itália um longo ensaio, na primavera de 1982,
no qual afirmei explicitamente que, enquanto as antigas políticas dos EUA para
a regressão político-militar do socialismo de tipo soviético não pareciam
passíveis de sucesso, o que estava ocorrendo na Europa oriental podia levar à
restauração do capitalismo. Pela mesma razão, eu também considerava a idéia de
socialismo de mercado uma contradição nos próprios termos, porque pretenderia,
numa concepção esperançosa, unir as duas modalidades: a extração econômica com
a extração politicamente regulada de trabalho excedente - daí porque seria
sempre um ponto de partida impossível.
É
absolutamente crucial reconhecer que o capital é um sistema metabólico, um
sistema metabólico sócio-econômico de controle. Você pode derrotar o
capitalista, mas o sistema fabril permanece, a divisão de trabalho permanece,
nada mudou nas funções metabólicas da sociedade.Com efeito, cedo ou tarde, você
perceberá a necessidade de reatribuir essas formas de controle a
personalidades, e é assim que a burocracia tem origem. A burocracia é uma
função dessa estrutura de comando sob as circunstâncias alteradas onde, na
ausência do capitalista privado, você tem que achar um equivalente para esse
controle. Considero essa conclusão muito importante, porque com muita
freqüência a noção de burocracia é apresentada como uma espécie de quadro
explanatório mítico, quando não explica nada. A própria burocracia precisa de
explicação. Como surge essa burocracia? Quando você a utiliza como uma espécie
de deus ex machina que tudo explica em termos de burocracia, se você se
livrar dela então tudo estará resolvido. Mas você não se livra da burocracia, a
menos que ataque os alicerces sócio-econômicos e vislumbre um modo alternativo
de regular o processo metabólico da sociedade, de tal forma que o poder do
capital seja, de início, limitado para, ao final, ser certamente eliminado. O
capital é uma força controladora, você não pode controlar o capital, você
somente pode se livrar dele por meio da transformação de todo o complexo de
relações metabólicas da sociedade - é impossível enganá-lo. Ou ele o controla
ou você se livra dele, não há solução intermediária, e é por isso que a idéia
de socialismo de mercado não poderia concebivelmente funcionar, desde o
princípio. O que realmente se necessita não é a restauração do mercado
capitalista, sob o apelido de um mercado social totalmente fictício, mas a
adoção de um sistema adequado de incentivos. Não há sistema de produção social
que possa funcionar sem eles - e com que pessoas devemos relacioná-los? Não
entidades coletivas abstratas, mas indivíduos. Se as pessoas como indivíduos
não estão interessadas, não se envolvem com o processo de produção, com a
regulação do processo metabólico social, então, cedo ou tarde, elas assumem uma
atitude negativa ou mesmo ativamente hostil diante dele.
O senhor
fala em desafiar o capital e me pergunto se poderia dizer um pouco mais sobre
as implicações práticas, as implicações para a luta socialista, de sua
distinção entre capital e capitalismo.
MÉSZÁROS:
Antes de tudo, a estratégia a considerar tem que ser definida nesses termos. Os
socialistas não podem continuar com a ilusão de que tudo se resume a abolir o
capitalismo privado - porque o problema real permanece. Enfrentamos realmente
uma profunda crise histórica. O processo de expansão do capital, abrangendo o
próprio globo, foi mais ou menos realizado. O que presenciamos nas últimas
décadas foi a crise estrutural do capital. Eu sempre defendi que há uma grande
diferença da época em que Marx falava da crise como algo que se desencadeia na
forma de grandes tempestades. Hoje ela não tem que assumir essa forma. O que caracteriza
a crise de nosso tempo são as precipitações de variada intensidade, tendentes a
um continuum depressivo. Recentemente começamos a falar de uma recessão
de mergulho duplo (double dip), logo falaremos de uma recessão de
mergulho triplo. O que estou dizendo é que essa tendência para um continuum
depressivo, em que uma recessão se segue a outra, não é uma condição que pode
ser mantida indefinidamente, porque ao final ela reativa violentamente as
explosivas contradições internas do capital e existem também certos limites
absolutos a considerar nesse aspecto.
É bom
lembrar que estou falando da crise estrutural do capital, que é um problema tão
sério quanto a crise do capitalismo, pois uma forma de se livrar da crise do
capitalismo, em princípio, era a regulação estatal da economia - e, em alguns
aspectos, no horizonte externo do sistema capitalista ocidental você pode
considerar sua possibilidade. O capitalismo estatal pode surgir quando o
sistema capitalista ocidental enfrenta problemas profundos, mas eu diria de
novo que esta não é uma solução viável a longo prazo, porque os mesmos tipos de
contradições são reativados, notadamente a contradição entre a extração
política e a econômica do trabalho excedente. E não estou falando de fictícios
eventos futuros. Basta pensar no fascismo, no sistema nazista que tentou esse
tipo de regulação corporativa estatal do sistema, a fim de sair da crise do
capitalismo alemão naquele momento preciso da história. Portanto, o que estamos
considerando aqui é que todas essas formas de deslocar temporariamente as
contradições internas do capital estão se esgotando. O mundo todo é muito
inseguro. A maioria avassaladora da humanidade vive nas condições mais
abomináveis. O que aconteceu com a modernização desses países? Ela assumiu a
forma de roubo, subtração e recusa insensata em considerar mesmo as implicações
para a sobrevivência da humanidade - o modo como esses territórios e sua
população foram tratados -, que tudo foi completamente solapado, e hoje você
tem uma situação na qual ninguém acredita mais na modernização do chamado
"Terceiro Mundo". E é por isso que esse continuum depressivo
é, a longo termo, uma situação insustentável e, por essa razão, uma
transformação social deve ser viável. Mas não o é por meio da revitalização do
capital. Só pode ser efetuada com base em um afastamento radical da lógica
desse insensato e destrutivo controle orientado para a acumulação.
Essa
crise imensa a que me refiro viu não apenas a virtual extinção dos partidos
comunistas, dos partidos da Terceira Internacional, mas também a extinção dos
partidos da Segunda Internacional. Por quase cem anos, aqueles que acreditavam
nas virtudes da reforma e do socialismo evolucionista falavam da transformação
da sociedade que conduz às relações socialistas da humanidade. Tudo isso foi
descartado, mesmo em termos de seus próprios programas e perspectivas. Vimos
recentemente que os partidos socialistas da Segunda Internacional, e seus
vários associados, sofreram derrotas e reveses avassaladores em cada país particular:
na França, na Itália, na Alemanha, na Bélgica e nos países escandinavos e agora
há pouco também na Inglaterra, a quarta derrota consecutiva do Partido
Trabalhista. Foi bastante apropriado que essa derrota em série, em todos esses
países, coincidisse com a abertura festiva da Euro Disney, porque o que esses
partidos adotaram nesse período histórico, em sua resposta à crise, foi uma
espécie de socialismo Mickey Mouse, e este é totalmente incapaz de intervir no
processo social. Eis por que não é acidental que esses partidos adotem a
sabedoria do capital como sistema insubstituível. O líder do Partido
Trabalhista chegou a declarar que a tarefa dos socialistas é o melhor
gerenciamento do capitalismo. Atualmente essa espécie de grotesca insensatez é
ela mesma uma contradição. É uma contradição nos próprios termos porque é
extremamente presunçoso pensar que o sistema capitalista funcionaria melhor com
um governo trabalhista. Os problemas continuam a se tomar mais graves e o
sistema político é incapaz de responder, porque opera sob os cada vez mais
estritos constrangimentos do capital. O próprio capital não deixa mais nenhuma
margem de manobra. A margem que antes existia para os movimentos políticos e as
forças parlamentares era incomparavelmente maior no século XIX ou nas três
primeiras décadas do século XX. A Grã Bretanha já é parte da Europa e não há
meio de reverter esse processo, no sentido de que a pequena Inglaterra será
capaz de resolver tais problemas.
Mas isso
também levanta imediatamente a questão: como nos relacionamos com o resto do
mundo diante do que aconteceu no Leste, na União Soviética? Um novo problema
fundamental surgiu no horizonte. No caso da Rússia, li recentemente que, além
dos 25 bilhões de dólares prometidos pelo Ocidente, ela precisará somente este
ano de outros 20 bilhões. Onde vamos achar os bilhões de dólares de que a
Rússia necessitará quando o débito americano é ele próprio astronômico? Os
problemas deste mundo estão se tomando tão entrelaçados, tão mesclados uns com
os outros, que não se pode pensar numa solução parcial para eles. São
necessárias mudanças estruturais fundamentais. As duas décadas e meia de
expansão depois da Segunda Guerra Mundial foram seguidas por um mal-estar cada
vez maior, o colapso de estratégias antes acalentadas, o fim do keynesianismo,
o aparecimento do monetarismo etc., e todos eles levando a nada. Quando pessoas
autocomplacentes como John Major dizem que o socialismo está morto e o
capitalismo funciona, devemos perguntar: o capitalismo funciona para quem e por
quanto tempo? Li recentemente que os diretores da Merrill Lynch receberam, um
16,5 milhões de dólares, outro 14 milhões e outros dez ou quinze deles, 5,5
milhões cada um, como remuneração anual. Funciona muito bem para eles, mas como
funciona para os povos da África, onde você os vê todo dia, na tela da TV? Ou
em vastas áreas da América Latina, ou na Índia, ou no Paquistão, ou em
Bangladesh? Eu poderia continuar enumerando os países onde falamos de centenas
de milhões de pessoas que mal podem sobreviver.
Em sua
visão, o agente da mudança nessa situação, o sujeito revolucionário, é ainda a
classe operária?
MÉSZÁROS:
Sem dúvida, não pode haver outro. Lembro-me que houve uma época em que Herbert
Marcuse sonhava com novos agentes sociais, os intelectuais e os marginalizados,
mas nenhum deles foi capaz de implementar a mudança. Os intelectuais podem
desempenhar papel importante na definição de estratégias, mas é impossível que
os marginalizados sejam a força a implementar essa mudança. A única força capaz
de introduzir a mudança e fazê-la funcionar são os produtores da sociedade, que
têm as potencialidades e as energias reprimidas por meio das quais todos esses
problemas e contradições podem ser resolvidos. O único agente capaz de alterar
essa situação: que pode fazer valer sua força, encontrando satisfação nesse
processo, é a classe operária.
Entrevista na Integra localizada no site abaixo: